Embarco na gare do Oriente.
Finda uma semana esgotante de trabalho, o meu primeiro pensamento ao entrar no InterCidades é pedir a todos os santinhos para que ninguém se sente ao meu lado. Estou cansada, tenho um fdsemana prolongado pela frente que se adivinhamente optimamente interminável e quero chegar a Campanhã fresca e pronta para o que der e vier, pois sei que a noite vai ser longa.
Logo, mal chego ao meu lugar no comboio, deparo-me com uma senhora sentada no meu lugar. À janela. Só gosto de ir à janela. Tanto dá para apreciar a paisagem linda até ao Porto, como dá para me encostar e passar pelas brasas um bocadinho...
"Ok, vais aí desde que não abras a boca... Cedo-te a minha janela pelo teu silêncio", pensei para mim e para comigo.
O "Boa tarde" cordial chega. Não tenho pachorra para conversas circunstanciais. Nunca tive. Detesto falar sobre o tempo. Sobre o que vou fazer ao Porto. Nunca ninguém se satisfaz com a minha resposta: "Apeteceu-me!".
Apeteceu-me. Pronto. E depois?
Ok. Silêncio. Absoluto.
Que findou mal se ouviu: "Então, vai para o Porto?"
Xiça! Este comboio pára em tantas estações! Porquê logo o Porto?
Ok. Respondo segundo as regras de boa-educação que sempre tive.
"Sim, vou"
"E então?"
"E então"?! Que raio de pergunta! Só me apetece responder "E então pronto!!!"
Que mais?
Ok, refreio todo o meu mau-feitio que vinha já preparado para o "então pronto" e respondo.
"Vou lá jantar"
"Ah...jantar...e onde?!"
Epá, não sei. Xiça! Sei lá! Preocupa-me mais a fome na Somália que onde vou jantar hoje. Vou jantar com amigos. É isso que interessa. com amigos.
Ok...
Quer saber...?
"vou jantar com amigos. E amanhã vou para Cinfães do douro. Pronto, é isso, vou parar no Porto para jantar e depois sigo viagem."
Ok... Pensa aí....Faz as contas que quiseres.
Entretanto, embrenho-me numa troca de sms com o meu patrão que está em terras Tailandesas. Uns momentos, eu e o telemóvel. Sozinhos.
Ok, continuando...
Está bem. eu converso contigo.
É uma mulher com bom aspecto. Parece-me solteira. Quiça professora, devido ao tom curioso na voz dela. Não sei. Tem ar de Mãe. Calma, mas cansada.
Olho-lhe nos olhos.
Tem luz nos olhos.
Tem uma expressão feliz.
Como quem está de bem com a vida.
Começamos a conversar.
Fluímos como se estivéssemos sozinhas naquela carruagem.
Santarém.
Eis que entra um homem para o qual era impossível não olhar.
Estilo descontraído mas extremamente composto e de bom gosto.
Gostei do conjunto. Camisa branca branca branca sobre uma pele moreníssima. Sorriso branco como a camisa. Olhos vivos. Mãos perfeitas.
Ok. Passa por nós. Olha olha olha e olha...para ver os números dos lugares.
Segue em frente.
Fátima.
O enigmático homem é abordado por uma senhora. "O Sr. está no meu lugar.". Levantou-se e procura outro lugar. Senta-se e recomeça a ler a revista que tem como companhia.
Pombal.
Interpelado pela segunda vez. Estava outra vez no lugar de alguém.
Eis que se dirige... a nós?!
"Uma das senhoras está no meu lugar."
Olhámos incrédulas uma para a outra. Primeiro porque não acreditávamos que nos tivéssemos enganado no lugar. Nem ela, nem eu. Segundo, porque não acreditávamos que este homem com pinta de galã se tivesse dado ao trabalho de andar a saltitar de um lugar para o outro, só para não nos incomodar.
Ok... Abrir malas, abrir carteira, tirar bilhetes.
Ambos com o mesmo número. N.º 66. Mesma carruagem. Mesmo comboio.
Espanto estampado nos três rostos.
Como resolver a situação?! O que teria causado esta "coincidência"? (eu não acredito em coincidências, mas vá lá...)
Uma senhora perto de nós, aprecebendo-se da situação, cedeu-lhe o lugar. Sairia em Coimbra.
Ele sentou-se, abreviando por minutos a tentativa de resolução do mistério.
Coimbra B.
Ele tem de se levantar de novo. Alguém que entrou nesta estação tem bilhete para aquele lugar.
Vem para perto de nós.
Entre risos incrédulos pela estranha situação e olhares curiosos de como aquilo teria acontecido, seguimos viagem...
Eu fui alternando com ele o assento, pois a Mulher-MãeProfessora tinha maleitas que a impediam de estar muito tempo em pé.
Rimo-nos a três pelo caricato da situação.
A Mulher-MãeProfessora, eu e o HomemGalãdasMãosBonitas.
Até chegar o revisor.
Expusémos-lhe a situação.
Erro técnico.
O sistema a falhar de novo. Sobreposição de bilhetes.
Eis que a solução é o HomemGalãdasMãosBonitas ir para um lugar de 1ª Classe, pois não estavam todos ocupados.
Ficou mais um bocadinho. O tempo de um cigarro meu.
Voltámos à nossa conversa ocasional e obviamente que, sendo mais nova, fui a bombardeada com "Ai tão charmosos", "Ai tão bem formado", "Ai que bom partido". Sim. Assenti a todas as afirmações.
E deixei-me levar pelo meu lado feminino e embrenhámo-nos em risinhos abafados e olhares cúmplices.
"Mas também não vamos passar o resto da nossa viagem a falar dele!".
Claro que não!
Claro que sim!
Após breve introdução de conversa socio-económica literária política e religiosa (vulgo, desbloqueadores de conversa de nível mais elevado...), vem o HomemGalãdasMãosBonitas à baila.
"E se fôssemos ter com ele?"
Porque não...?
Afinal, Campanhã adivinhava-se a poucos longos minutos de distância, e consequentemente a rotina das nossas vidas também.
Armas e bagagens rumo à 1ª Classe.
O HomemGalãdasMãosBonitas, a Mulher-MãeProfessora e eu.
Os três a rir como crianças. Sentimento inigualável. Pela leveza. Pelo não-compromisso. Pela espontaneidade.
Seguimos até ao Porto, desta feita em 1ª Classe, eu confortavelmente instalada e a Mulher-MãeProfessora a olvidar-se das maleitas que a assolam e a acocorar-se junto do HomemGalãdasMãosBonitas em amena cavaqueira!
Gaia. A Mulher-MãeProfessora quase se esquece de saír. Não sem antes fazer questão que trocássemos todos os respectivos contactos.
Fui a cavaquear entre ruborizar de faces, com o HomemGalãdasMãosBonitas até Campanhã.
(Homens bonitos seguros lindos e educados é que todas as Mulheres sonham... e a mim, nesta fase, intimidam-me.........que parvoíce!)
Saímos.
Entreolhámo-nos.
Despedimo-nos.
Beijámo-nos. Na face. Óbvio.
Até breve.
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Qual não é o meu espanto, quatro dias volvidos, ao comprar o bilhete Campanhã-Oriente, quando reparo que é exactamente o mesmo n.º que começou tudo?
Mais uma vez.
Bilhete nº 66.
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Continuo a não acreditar em coincidências.
Acredito que este episódio me aconteceu por alguma razão.
Quanto mais não seja para renovar a minha Fé na Humanidade.
A olhar para os rostos. Para ver as vidas com as quais a minha se cruza.
Para sorrir.
Para me lembrar que, por muito mal que me tenha corrido o dia, vale a pena sorrir.
Porque pode haver alguém que esteja a olhar para mim.
E um sorriso gera outro sorriso.
Para pensar...e sorrir!