“O Sol já está posto
E eu com rosas p‘ra apanhar...
Se não fossem os espinhos,
Apanhava-as ao luar...”
Em vésperas de completar 91 anos, está mais lúcido que a maior parte das pessoas que eu conheço.
Força invejável.
Saúde de ferro.
Rédea curta toda a vida. Com tudo e todos. Inclusivé ele próprio.
Nunca tive muita afinidade com ele. Sempre foi uma daquelas figuras meio sombrias...Estava lá nos jantares de Natal-sim, Natal-Não, dava uma notazita e um puxão de orelhas e uma alcunha a cada neto...
Claro está que ninguém sabe bem quem é qual alcunha, mas gosto particularmente de "Mordicha". Fico com ela. A minha Mana fica a "Caga-no-ninho" (como o meu Pai foi alcunhado também por ser o mais novo...), a minha Prima fica a "Caga-e-tosse" (nunca percebi muito bem esta...) e o meu Primo fica o "Batatinha".
(Se fôssemos uma família da High-Society, vai uma aposta que "caga e tosse" era FASHION...?).
O meu Avô sempre foi sapateiro. Daqueles à moda antiga.
Desde que "deixou a terra" até a minha Avó falecer.
Só parou de se levantar às 06:30 da manhã e atravessar o Tejo quando a minha Avó morreu.
Aí, andou um bocado "às aranhas" - detesto esta expressão - voltou à sua pinguita (com uma benção e uma reza antes do shotzinho para não "caír mal"...), entretanto teve um coágulo monstro no cérebro, foi operado de urgência e teve uma convalescença que muitos putos de 18 anos não têm...
Hoje em dia, passa a semana sozinho - nem quer ninguém a chatea-lo - tem assistência da Santa Casa e vai quase todos os fins-de-semana para o Alentejo.
Qualidade de vida?
É possível que assim seja considerado.
Mas para isso também é necessário uma vida árdua de trabalho, abrir mão de quase tudo, para chegar aos 90 em forma, "recheado" e implacável como sempre foi.
(Pessoalmente não concordo.
Pode-se perfeitamente "nascer com o rabo virado prá Lua".
Ou viver um dia de cada vez, lembrando o ontem para viver bem o amanhã.)
Lembro-me que íamos em miudos visitar o Avô à sua oficina em Belém.
Lembro-me do cheiro da cola super-forte para o sapatos.
Da formas dos sapatos das "Senhoras do Restelo", cada uma com a sua medida.
De me picar nos preguinhos minúsculos de sapateiro.
De levar nas orelhas porque não tinha engraxado os sapatos (era miuda e brincava no jardim de Belém, onde cheirava a maresia d'ontem e tentava apanhar borboletas...).
Estive com ele ontem.
Agora que é Bisavô, tenta ser Avô.
Trapalhão e desconcertado, ao seu jeito, como quem nunca teve mimos.
Tosco. Com as mãos ásperas de anos e anos de cola e graxa.
Mas lúcido e como as árvores - vai morrer de pé.